terça-feira, 26 de agosto de 2014

ESPAÇO SIDERAL EM OSTRACISMO

Essa bolha orbitando ao meu redor ofusca todos os corpos celestes além de mim. Com alívio mútuo e pesar escasso percebi os portões fechados. Acho que a casa desabou e as janelas foram obstruídas com concreto e telhado. Só paira essa poeira de revés em todos os cômodos. Estar só se torna habitat natural tão facilmente. Quando vi, era quase cárcere. Insular não liberta. Pior, prende. Eu quis ficar no sofá a noite inteira e a manhã inteira e até um pedaço da tarde e me apeguei aos pés da estante de madeira e aos sapinhos em miniatura postos de qualquer jeito perto da televisão e àquele quadro com a fotografia de alguém sorrindo abertamente que noutro dia eu fui. Isolamento é querer ficar, e, após um tempo, não deixar ir.
Às vezes o correio surge deixando duas ou três cartas de remetentes recém-nascidos. Nunca as li. É reclusão. Só me afetam essas portas velhas, as gavetas empoeiradas, o meio pão embolorado sobre a mesa, a cortina amarela tapando a lua e os remetentes mortos. Mortos de idade, pois continuam vivos em mim. Inclusive, foi no espelho do corredor a última vez que me vi. Pus os olhos no reflexo desta pele frívola e pude rever as mãos que me moldaram. Quem escancarou as portas, quem desperdiçou meia hora, quem alimentou os cães, quem afagou o ego, quem afogou o mastro e quem apagou as luzes. Artesanato. A vida da gente, no fim, é puro artesanato. Moldar e ser moldado enésimas vezes, jamais concluir.
Deste coração crepitante não me falha a memória. Lembro com clareza os instantes sadios, os cinzentos e os vagos. Lembro porque é como se todos os amores e desamores - reais ou particulares - ainda estivessem aqui, vagueando pela casa. Vou ao jardim e me deparo com você que foi embora tão cedo; sento na varanda e a do olhar sem culpa senta ao lado; abro o porão e lá está o das cartas niilistas - grande amor. Cada um em seu eterno silêncio, com passos inaudíveis, cheiro lúgubre. Enorme angústia essa, a de levar tanta gente em si. Quando a noite se deita no horizonte da rua, só resta a mim. O desespero invade às quatro. Contudo, de tão interminável que é a madrugada, finita ela se torna. Passa. Sempre. É manhã agora. Volta a luz como volta a possessão do vazio.
Todas as matérias soam como ausência. Os carros coloridos pelas ruas, o riso etílico, a confusão. Porque quase tudo falta. E me pergunto se em algum ponto desta vida de setenta anos - ou noventa, quem sabe trinta - serei qualquer coisa além de ausência. Tal como um bicho que precisa aprender a ficar. Ficar por necessidade ou amor. Não me carece amar. Eu amo silenciosamente este espaço sideral que prevalece em mim. Amo cada atmosfera, cada órbita e as estrelas maiores. O que falta – dentre tudo que falta e grita - é uma brecha na bolha, um buraco, uma fresta que permita o contato entre o que nunca foi tocado e o que toca. Talvez o seu braço retirando pedra por pedra os obstáculos do portão. E, sabe, à medida que penso nisso cresce vagarosamente nas paredes uma ânsia por sorrir às mãos da paixão, por ensacar o pó do guarda-roupa a fim dos novos sapatos do amor. Cresce, e eu me retraio.
Dia desses algo irrompeu no meio do quintal. Nada fantasmagórico, real como eu. Se aproximava depressa e famélico. Antes que me ocorressem outras vias, deu-se morto no limbo dos fundos. Foram tantos. Se culpar qualquer partitura for justificativa, de certa forma, culpo o medo. Não este medo de outra mão deslizando minha coxa, de um riso espontâneo na dor, do corpo nu na cama ou de felicidade. Medo de precisar abandonar as mágoas, os sonhos falecidos, as saudades que há anos pisam o mesmo chão. É tudo que me segura, que assegura. Nos livros que li, a tristeza perdura, mas estas coisas se vão. Casa cheia de passado, pés inchados, poeira. Tudo bem, não precisa do olhar preocupado, como quem olha para um trem sem rumo. Eu mesma abro asas e sobrevoo o portão ocluso. Vou embora. Mas não hoje. Tem uma memória na sala, um senhor no porão e uma tarde inteira de silêncio. A solidão é meu berço.

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